Jorge era um sujeito que acreditava nas instituições. Expulso pela milícia de uma favela à beira da Avenida Brasil, ele foi ao batalhão da Polícia Militar mais próximo denunciar os PMs, muitos deles da própria unidade. À época, há cerca de dez meses, quatro dos cinco policiais acusados de terem tomado a favela do tráfico eram de lá, do 16º BPM (Olaria). Claro que levou com a porta na cara.
Mas insistiu. Apesar do medo que todos nós sentimos, que às vezes nos paralisa, ele não se calou e não fugiu às responsabilidades do cargo, já que era presidente da associação de moradores do local, de fato e de direito, diplomado pela Faferj. Jorge foi denunciar fatos gravíssimos à Corregedoria da PM, à Corregedoria Geral Unificada, à Ouvidoria, ao Ministério Público, à Secretaria de Segurança Pública, à Comissão de Direitos Humanos da Assembléia do Rio, só para citar algumas autarquias públicas que procurou. Em quase todas, prestou depoimentos formais, forneceu seu nome completo, Jorge da Silva Siqueira Neto, endereço, número de identidade, CPF. Jorge andava com essa papelada toda numa pasta de plástico que abria, sempre ao final da conversa, como que para comprovar tudo o que dizia.
Exilado e privado de exercer seus direitos políticos, Jorge sabia-se vítima da ditadura sem disfarces que impera no Rio de Janeiro, em áreas onde o Estado não chega. E, quando chega, é melhor nem comentar. Sem dinheiro, Jorge não tinha mais como sustentar os filhos (seis, ao todo) sem contar com a caridade alheia. Passou a freqüentar a fila de distribuição de cestas básicas, em igrejas do subúrbio. Ficou apenas com a roupa do corpo e o carro. Um depósito de gás e um trailer que tinha foram confiscados pelos PMs. Apesar disso, Jorge cumpria, religiosamente, um périplo diário para cobrar do Estado respostas para as denúncias que apresentara.
Apesar das ameaças, todas devidamente registradas, sem no entanto comover as autoridades, Jorge, por último, ainda fez questão de levar ao conhecimento da opinião pública sua história e aceitou ser notícia de jornal. Ele foi personagem da série "Os brasileiros que ainda vivem na ditadura", do GLOBO.
Na nossa primeira conversa, percebi logo que ele seria, como de fato foi, um dos principais casos que contaríamos naquelas reportagens todas feitas com histórias comoventes de uma gente muito corajosa. Além de destemido, Jorge falava fácil, apesar do pouco estudo. Tinha todas as informações na ponta da língua e sequer consultava um rascunho para dizer o nome todo, o número da identidade e até a placa dos carros dos PMs que lhe roubaram a dignidade, como costumava dizer. Em meia hora, ele apresentava um impressionante e minucioso calendário de crimes, de tortura a assassinatos, praticados pelos PMs-milicianos da Kelson's. Datas, horários, nomes das vítimas, número de inquéritos. Jorge parecia um repentista do apocalipse. Ele também testemunhou oficialmente sobre alguns desses crimes. A esta altura, os inquéritos devem estar em alguma gaveta empoeirada.
No dia 26 de agosto, a história de Jorge foi contada pelo jornal. No dia 30, quatro PMs denunciados por ele foram presos. No dia 3 deste mês, foram soltos. No dia 7, Jorge foi seqüestrado e está desaparecido até hoje. Na minha cabeça, ficaram as frases que ele repetia sempre ao final das nossas muitas conversas. "Eu tenho fé em Deus que tudo vai dar certo", e finalizava com: "minha amiga, me ajuda". Não éramos amigos, mas, talvez por ter me confiado tantas revelações, ele se sentisse grato, ao menos por ter sido ouvido.
Foi mal, Jorge, desta vez, não deu.
Jorge agora é, possivelmente, de acordo com o Estado, alguém que teria algum tipo de envolvimento com criminosos, talvez com o tráfico. Afinal, era líder comunitário de uma favela que, antes da entrada da milícia, estava nas mãos de uma facção criminosa. Não há inocentes no Rio. Não mais, muito menos presidentes de associaçãode moradores de favelas, que vivem no fio da navalha, isto até os mais crédulos sabem, quanto mais a polícia. Mas daí a ser traficante, só porque explorava um depósito de gás, atividade que costuma ser associada ao tráfico ou à milícia, parece uma simplificação até criminosa. Principalmente porque ele não está mais por aqui, a incomodar as autoridades. E considerá-lo suspeito só porque desconhecia medos comuns a moradores acuados por grupos armados é absurdo.
E mais. Se era suspeito, Jorge deveria ter sido preso. De fato, ele podia ter lá suas culpas, mas, se tivesse sido detido, hoje estaria vivo para se defender das acusações ou responder por seus supostos crimes.
Em vez de responsabilizar a vítima, o Estado deveria combater os criminosos. Se o crime não for esclarecido e os assassinos presos, será a nossa dignidade, a de todos nós, que terá sido roubada.
CARLA ROCHA é jornalista.