Charutos*
Wilame Prado
Acho que a grande maioria dos garotos que atingem certa idade começam a desejar algumas coisas que, em certo ponto, é por influência de filmes norte-americanos. Foi unanimidade quando tocaram no assunto de charutos. Estava combinado de que seria naquela noite linda de sexta-feira, onde a negritude que esmagava nossas cabeças se entrosava com a brisa amena e deliciosa que esvoaçava os cabelos compridos de nós. Eu, Flávio e Caetano.
Em frente ao estádio, num bar, ou melhor, num boteco de esquina, foi que experimentei pela primeira vez um charuto. Eu achava que todos que estavam naquele ambiente boêmio iria olhar para mim de um jeito diferente; senti-me mais importante, mais mal, mais Fidel, mais jogador de pôquer, mais Juan Carlos Onetti, mesmo sem saber se ele fuma charuto. Caetano também estava no auge de um orgasmo "charutual", porém não tomava tanta cerveja como eu. E Flávio, coitado, não se dava ao deleite de experimentar essa sensação de grandeza, sendo que para mim era o que mais merecia, pois era um cara humilde, que tinha todo direito de pelo menos uma vez se sentir mais do que os outros.
Apesar de não sabermos se o charuto era de boa qualidade, fizemos um ritual e tanto, pois de fato merecia. Caetano mordeu a ponta, pois qualquer bom fumante de charuto sabe que, se cortar com a tesoura afeta o sabor (eu não sabia). Depois, tratamos logo de arrumar uma caixa de fósforos. Recusamos o isqueiro da velha do bar e perguntei para a senhora se ela estava de brincadeira comigo, pois uma dona de um bar deveria saber que acender charutos com isqueiro corrompe o sabor original do nobre fazedor de fumaça (eu também não sabia, quem me falou foi o Caetano).
Percebia que estava mais esnobe, mais norte-americano, mais desgraçado. É por isso que existem tantas pessoas más e ridículas neste mundo. Não por causa de uma simples merda de um charuto, mas de pequenas coisas materiais que sobem nas cabeças das pessoas, corrompendo a dignidade, até então, original de cada ser.
Vou explicar melhor: as pessoas são outras depois de conseguirem algo que tanto almejam e que provavelmente tem um status maior do que de outro grupo de pessoas. Você seria a mesma pessoa depois de virar um presidente de um país, de um movimento estudantil ou de qualquer presidência? É óbvio que agora você fala que seria a mesma pessoa, mas é aí que está a questão. Não é por querer. É um mal de todo ser humano. É inevitável.
Mas, voltando a descrição daquela linda noite, onde nada poderia evitar a bebedeira, nem a tristeza ou alegria contida em nossos corações, pois, afinal de contas, além de ser sexta-feira, ainda era a primeira vez que eu e meu amigo Flávio bebíamos juntos. A primeira de várias bebedeiras. Logo em seguida, depois de tomar um pouco no boteco ao lado do estádio, fomos em direção a nossos humildes lares, onde talvez um banho quente estaria nos esperando ou até uma pilha de louças para lavar, visto que são atividades normais do cotidiano de moradores de repúblicas. Refleti bem e lembrei que havia oitenta por cento de chances de ter uma louça me esperando e ainda um banheiro para lavar. Juntando isso com certo grau de excitação que a cerveja e o magnífico instrumento de elevação moral - o charuto – haviam provocado, insisti aos amigos para que não deixássemos a tão linda noite boêmia se encerrar tão cedo.
Então fomos para outro boteco, ou melhor, fomos para uma lanchonete fazedora de lanches, ao lado do bosque que continha blocos humildes e paupérrimos, a Universidade Estadual de Maringá. Lá, tomamos cerveja para valer. No meio da jornada de morticínio de neurônios chegou um amigo meu da província e um amigo de curso do Flávio, que também era meu amigo de trabalho. Eles perceberam meu ponto de excitação alcoólica, deixando-me irado. Esse motim durou dois minutos até que, como uma fórmula mágica, vejo Dasy, amiga nossa de trampo, passando dentro de uma circular.
Devido a vários fatores que já mencionei, dei meu primeiro fiasco da noite: quase parei a circular só para dar um oi à nossa companheira. Porém, devido a seu alto grau de reflexo, vendo rapidamente que existia um copo de cerveja em minha mão, ela me esnobou. Isso me deixou muito triste, pois, até então, pensava que ninguém tinha coragem de rejeitar Fidel Castro, o fumante de charutos.
Bebemos bastante ainda, mas já não era a mesma coisa. Ainda aconteceram coisas incríveis, como exemplo outra circular passando na rua com outra amiga nossa. Tentei me animar, mas pensava seriamente em desistir de ser o chefe de Estado de um país socialista.
Ora. A vida, nesse dia, deu-me um golpe. Logo percebi - com o passar das bebedeiras, com o passar dos anos, com o passar dos acontecimentos - que a vida é essa. Um golpe. A felicidade são todas ilusões muito bem detalhadas, umas duram mais do que as outras. Uns se enganam a vida inteira achando que são felizes, mas todos, sem exceção de ninguém, percebem que a felicidade plena não existe. Assim como Santo Agostinho a denominava como o conhecimento de Deus, assim como um milhão de românticos acham que felicidade é quando se encontra alma gêmea, assim como Flávio acha que felicidade é poder saber tudo de Gabriel García Márquez e ser seu discípulo, eu, naquela sexta-feira linda, achava que tinha encontrado a felicidade naquela merda de charuto.
Volto para casa. Já é tarde, ou cedo, dependendo do ponto de vista. Lembrei-me de que teria de trabalhar no outro dia, ou melhor, daqui algumas horas. Isso me fez perceber que a ressaca estava começando. O gosto de charuto na boca me deixou de mal-humor. Percebo definitivamente que não gosto de charutos, nem de me sentir melhor do que ninguém. Percebo que o bom e velho humilde que sou, volta ao meu corpo. Cheguei atrasado ao serviço. Levei bronca, e isso é deprimente. Será que minha chefe fuma charutos?
*Meu primeiro conto, escrito no início do ano de 2004. Vendo as notícias sobre a renúncia de Fidel Castro, deu-me vontade de publicá-lo.
Wilame Prado é estudante de jornalismo.