terça-feira, 18 de novembro de 2008

BARCELONA É FEMININA

*Eliane Martins
Fui ver o último filme do Woody Allen e saí do cinema resmungando sozinha. Com tanta coisa interessante acontecendo no mundo, o cineasta velho e caduco continua falando de amor, sexo e orgia. Exibe cinicamente seus pretensiosos clichês antigos, acompanhado de imagens cada vez mais irresistíveis. Desvelando a gasta e rota tragédia da vida com sabor de coisa já vista.

O mal estar começou na entrada do cinema e a constatação do fiel público das tardes de sábado, que envelhecia. Ao meu lado, na última fila, um senhor de meia idade lia concentrado o livro que acabara de comprar, enquanto vez por outra alguém entrava na sala e manifestava uma suspeita euforia, provavelmente ao reencontrar um amigo aposentado que há anos não via. Esposas com sacos de pipoca ou uma amiga de companhia, entravam antes das luzes se apagarem e diminuir o burburinho.

O leitor distraído agora dava atenção à mulher e comentava do livro que tanto queria. As luzes se apagaram e o movimento na tela começa a reivindicar um tipo de concentração intelectual de respiração contida. Nada que aquele público desconhecesse ou já não tivesse imaginado cabível naquele retângulo imprevisto. A familiaridade dos movimentos se reafirma na narrativa, lugar de onde o autor se confunde com a obra, agora de forma invisível. A reação escandalosa do público quase sempre me irrita, não há motivos pra tanto riso.

Duas amigas americanas viajam de férias a Barcelona e tudo acontece em função desta viajem, como a sinopse avisa. Dentro do carro, enquanto viajam distraídas, o diretor vai delineando seus perfis caricatos na terceira pessoa, nos confidenciando as eternas inquietações de um homem excêntrico e exibido. Realçando sua presença incomoda e insistente, num sussurro de voz estridente que avisa todo o tempo quem dirige a película. Seu modo particular de narrar os personagens é como um velho conhecido. Como é conhecida a criteriosa escolha de belas mulheres, unida à uma eterna disposição em discorrer sobre o insolúvel conflito de relações, como drama central da vida. Não importando o lado da narrativa, apenas confirmando a inutilidade de qualquer tentativa.

A arte, com suas cores e energia, corrompe o olhar em direção à cidade escolhida, com destaque para a vida cultural emergente e suas recentes produções artísticas. É verão e Barcelona explode com sua arquitetura exuberante e seus costumes vivos, sendo vista primeiro de cima, da mansão do velho e pálido casal americano que hospeda as duas amigas. Em meio ao jardim florido o previsível casal mantém os traços da terra estrangeira à mesa, servida com todo o requinte. Enquanto comem, bebem e se confidenciam, discutem e interrogam sem nenhum pudor acerca do que é útil e indispensável à vida. E sobre os modos práticos de colocar estas verdades em dia.

Mais tarde, no grande salão de festas de uma exposição, o terceiro personagem da cena desfila pelas quinas, tendo como traço a camisa vermelha e o olhar sedutor, em eterna posição de conquista. As extravagâncias amorosas do galã - um convite inesperado para uma viagem decisiva - constroem um roteiro pouco convincente de triangulação, recheado de velhas e esvaziadas trapaças, grotescamente reproduzidas. Bem ao estilo do diretor, as cenas de sexo são propositalmente mal focadas e quase sempre partidas ao meio, ou interrompidas.

A sensualidade irresistível da mulher espanhola – antes uma citação, mais tarde uma aparição fantasmática de passionalidade incontida - ocupa metade das cenas seguintes, entre o inglês e a resistência da língua nativa. A mulher que retorna sempre em nome da paixão sem medida, interrompe brutalmente nas cenas decisivas, mudando pateticamente o sentido. Sem ser nunca compreendida, não importando nem mesmo a língua. Os excessos do autor desnudam o universo de contradições culturais embutidas por trás de costumes e estereótipos exagerados, com o quais ele se diverte sempre, na pele dos personagens. Especialmente os femininos.

O homem que estava do meu lado levantou-se empolgado enquanto a tela exibia os créditos finais. Woody Allen continua o mesmo, dizia ele em tom de euforia. Levei alguns dias para refletir sobre o que fui fazer ao cinema, além do hábito de pertencer a uma geração que aplaude o desencanto e ainda reconhece nele alguma poesia. Devem ser as ruas desconhecidas de Barcelona, misturada a uma boa dose de melancolia. Ou a mulher que ri sozinha dentro de mim, enquanto acende um cigarro e caminha pensativa. Pobre alma feminina, talvez Barcelona seja uma menina.
*Psicanalista

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