Foto: Talys Gonçalves
Foto: Talys Gonçalves
Abaixo o texto de uma pessoa que foi detida no confronto desnecessário com a PM:
GUERREIROS (AS) DO 234
Rio, sexta-feira, 26 de junho de 2009. Meio-dia, aproximadamente.
(Assim chamou-se a vitoriosa ocupação da Mem de Sá, e se dizemos vitoriosa, mesmo desalojada, é porque em tempo algum a estupidez venceu as flores).
Bombas de efeito imoral... Coturnos e cassetetes.. . Spray... Meu rosto vermelho de ódio e pimenta! Tanta força bruta, pouco direito, pouca educação... Ordem para os pobres, progresso para os ricos!, alguém já deve ter dito isso antes ... A constituição rasgada diante dos nossos olhos, a truculência policial desfilando na avenida..., Sete de setembro? Não, despejo. Cacos de direitos humanos pelo chão... Falou-se em cumprimento da lei, mas cumprimento da lei não implica em humilhação e tortura, e se a lei não serve ao povo, e se o povo é a maioria, ora, então de que serve a lei? Era mais que “dever” aquilo, era perversão mesmo, fetiche... Aqueles homens (?) se realizavam em sua violência... Alguns riam... Risos.
Crianças cantavam... Cantavam alegremente... Cantavam loucamente... E o desespero se misturava ao amor... Cantavam palavras de ordem, cantavam o hino nacional, e também canções religiosas.. . Que importa?! As crianças cantavam, e cantando se formavam numa autêntica Educação para a democracia! De maneira irônica e mesmo heróica os princípios políticos proclamados na LDB se cumpriam, crianças sem casa e talvez sem escola, mas não sem educação.
Sim, aquilo era Educação popular, um processo genuíno de formação política das classes populares, um ato educativo, pedagógico mesmo. E formando-os, também nos formávamos. Educação com o povo, educação popular.
Agora, detidos e transportados como animais na traseira de um Camburão, dividindo um espaço ínfimo, quase sufocados, no auge do nosso sofrimento, o companheiro Vlad. voltou-me os olhos úmidos e sorrindo, perguntou:
- Como vai a vida, companheiro? Está amando?
- Sim, amo, - respondi - mas não vou bem na faculdade...
E rimos, e assim sublimamos o sofrimento. A luta política é antes uma forma de ressignificar o sofrimento humano. O Vlad. pensou que morreríamos (porque a viatura tomara um destino diferente do informado), eu só queria sair dali, mesmo que fosse para isso - estava sufocando e àquela altura me concentrava em respirar. Em certo ponto daquele passeio bizarro, disse-lhe: - É só se concentrar, companheiro, concentre-se. .. Nossa companheira, no banco da frente, discutia firme e serena com o policial, e foi chamada de safada e palhaça por ele... Lá de trás, tivemos que ouvir isso em silêncio... A companheira E. continuava contestando e resistia bravamente. Minutos antes, num gesto de paixão e desprendimento, a companheira D. lançara de volta um jarro de mágoas que um soldado romano havia atirado em nós, e o jarro enfumaçava a rua... E era como um incenso, incenso de repressão...
Em certa altura da Batalha, tive a impressão de que a repressão do estado pesa de forma mais contundente sobre aqueles que têm a pele mais escura, ou menos clara, como queiram... Ouvi relatos da companheira G. voando pelos ares, enquanto eu era “conduzido” (recebendo uma “gravata”) com o corpo dobrado para frente, como em gesto de obediência e submissão... Não houve ofensa racial, de fato, mas houve tratamento racial; ali eu fui, sem dúvida, um escravo sendo capturado por um capitão do mato. O meu Black voava pelo ar, de pé para a luta. Vale dizer que aquela ocupação era negra. Neste país, o poder senti-se mais a vontade para se exercer sobre os não-brancos. Estávamos ali, e pessoas brancas e de belos olhos também lutavam e resistiam bravamente, e sofriam, e eram esmagados... E havia beleza e horror naquilo tudo!
Sim, esmagados em plena a democracia, a ditadura continua para os pobres em geral e para os negros em específico.
Por fim chegamos, e após uma eternidade saímos. E quando saímos tocava em algum canto da cidade uma canção do Bob Dylan, e sabíamos então que estávamos livres... Livres agora... Abraçamo-nos todos e todas, durante todo processo amparados por um bravo advogado, o companheiro e Dr. A.P, homem de meia-idade que trazia nos olhos o brilho vivo da ideologia, e animados pelo encorajamento de outros lutadores e lutadoras. (E enquanto isso ocorria, muitos outros continuaram na praça de guerra, acompanhando, registrando e orientando todo o processo) Demos mais um passo em liberdade, e derrepente era preciso continuar a luta, a luta continua, alguém diria, havia inúmeras famílias desalojadas. .. Era preciso ainda ocupar e resistir!
R.Q.
P.S. Não participei organicamente do processo desta ocupação, nem posso me considerar diretamente engajado neste movimento. Somente compareci ao ato em solidariedade a causa, e neste sentido aproveito para manifestar o meu amor e respeito não somente às famílias ocupadas, mas a todos os companheiros e companheiras que efetivamente constroem esta luta no cotidiano das ocupações sem-teto do Rio de janeiro. O movimento estudantil tem muito a aprender com as ruas...
Após a leitura desse texto, termino aqui meu relato, com lágrimas nos olhos, de como foram alguns momentos da minha semana... Ainda acredito em um mundo melhor!
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