Minha indignação com o tratamento do Estado dado à população das favelas do Complexo do Alemão não é diferente do que sentia quando presenciava o mesmo no Borél, Santa Marta, Vigário, Acari e tantas outras comunidades que trabalhei. O diferencial é que atuava como um ativista social no embate, muita das vezes até próximo demais, contra os violadores de direitos humanos, assim como fazem hoje os líderes comunitários nas favelas, vivendo no "fio da navalha". Agora mesmo não atuando fisicamente como no passado, participo desse processo como observador e divulgador, aperfeiçoando meu trabalho com esse blog e em breve com o novo site da ANF. Hoje estou publicando um texto que faz uma avaliação dos acontecimentos do dia 27 de junho. Esse texto foi escrito por um companheiro de muitas lutas em comum, dois dias depois da desastrosa mega-operação. Faço também uma indicação de um blog onde um morador do Complexo do Alemão relata a tal operação militar: www.jaenoticia.blogspot.com
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Desde ontem muita(o)s compas, a partir de informações passadas diretamente por moradores das favelas atacadas, ou colhidas no próprio local, tem revelado o que não era difícil de prever: que a grande maioria ou a quase totalidade das 19 mortes até agora comprovadas (parece que moradores estão realizando "buscas" na Grota, Fazendinha e matos próximos, pois desconfiam que há mais cadáveres) foram execuções sumárias, algumas vezes com requintes de crueldade. Outros elementos que atestam a inexistência de verdadeiros "confrontos": apenas um policial foi ferido (na Fazendinha, embora a maior parte das mortes aconteceram na Grota); moradores relataram que ouviram traficantes nervosos avisando a todos para vazarem, porque era muita polícia e não havia como enfrentar; só aconteceram duas prisões em toda a operação; policiais afirmaram que foi tudo uma "brincadeira" em que atiravam como "caçando patos". A OAB denunciou que alguns dos mortos não estavam envolvidos com o tráfico, mas de fato essa não é a questão principal. Mesmo que todos estejam "envolvidos" (palavra genérica do jargão policial- jornalístico que inclui coisas muito diferentes, desde o garoto que entrega o almoço dos meninos até o traficante homicida que retalha suas vítimas a facão ou machado, desde o mais mal-pago dos fogueteiros até o gerente da boca cheio de grana), executar uma ação policial como um assassinato em massa planejado, é algo totalmente fora das mais elementares leis, garantias constitucionais e princípios de direitos humanos. Essa é a denúncia principal que devemos fazer. Não se trata também de buscar "abusos" na operação ou apontar sua "ineficiência" porque traficantes armados continuam a circular na área (esse tipo de informação pode servir mesmo para conclusões do tipo: tinha que matar mais então!). O alvo da nossa crítica deve ser a operação em si, uma clássica operação militar de cerco e aniquilamento com ordens de não fazer prisioneiros, ou seja, algo condenado até pelas convenções de Genebra para guerra.
Se definimos assim corretamente o objeto de nossa denúncia, somos levados imediatamente a uma constatação perturbadora. Desde 1990 (caso das Mães de Acari) o Rio de Janeiro tem sido traumatizado por chacinas horrendas executadas por policiais, mas até hoje o Estado, na maioria dos casos, se auto-inocentava dizendo que os assassinos agiram fora de serviço, que haviam "manchado a honra da corporação", etc. Claro que são desculpas esfarrapadas, em primeiro lugar porque o Estado em si, e a instituição policial em particular, tem responsabilidade direta por abrigar no seu interior tantos assassinos e bandidos, por formar e promover tantos homicidas e torturadores. Em segundo lugar porque, em praticamente todos os casos de chacina, mesmo os policiais fora de serviço tiveram colaboração ativa de seus colegas fardados, basta lembrar o massacre na Baixada em 31/03/2005. Quando não tem como negar que policiais em serviço mataram friamente, o Estado continua se auto-inocentando colocando a culpa nos indivíduos que teriam "se descontrolado", "se excedido", etc. Assim foi e continua sendo no caso do Borel, por exemplo.
Mas na chacina de dois dias atrás, a coisa está bem diferente. As declarações do secretário Beltrame e do chefe da Polícia Civil Gilberto Ribeiro, e do comandante do 16o BPM Marcus Jardim, foram todas no sentido de aprovação total da operação, mostrando-a como um modelo a ser repetido em várias outras favelas. Sobre as mortes, a justificativa de sempre: aconteceram em confrontos. Como esse argumento está cada vez mais desacreditado, indiretamente e nas entrelinhas esses senhores aos poucos estão ficando mais ousados, e justificando com frases pitorescas e macabras a tática de atirar, matar e não prender. Beltrame, por exemplo, bem merece o apelido de Quebra-Ovos, porque já virou um bordão seu "não é possível fazer uma omelete (ou um bolo) sem quebrar os ovos". Não deve ser diferente a opinião dos demais graduados da cúpula da segurança pública estadual e nacional que acompanharam a operação pessoalmente no 16o: o comandante da PM Ubiratan Ângelo e o da Força Nacional de Segurança coronel Luiz Antônio.
Isso quer dizer que, pela primeira vez, o Estado assume e justifica uma chacina no Rio. Esta é uma nova realidade política que, se nós, militantes de movimentos sociais, moradores de favelas e periferias e organizações de direitos humanos, não compreendermos completamente, corremos o risco de ficar presos a táticas e formas de atuação ultrapassadas. Depois do 27 de junho, não há mais condição de considerarmos o governo estadual, e talvez nem mesmo o governo federal, como interlocutores legítimos na luta por direitos humanos. São pessoas responsáveis por homicídios qualificados, porque premeditados. Pensar que atuamos nas condições de um Estado de direito é hoje não só uma ilusão, é um erro político grave que nos leva à derrota em nossa luta.
Insisti muito nesse ponto em todas as atividades da Rede que realizamos na recente viagem à Europa. O primeiro passo para travarmos uma luta conseqüente contra a violência do Estado, seja dentro ou fora do Brasil, é reconhecermos claramente que não existe um regime de garantias constitucionais no Brasil. A ditadura hoje só se abate sobre a população pobre e negra, e sobre os poucos movimentos sociais radicais que prosseguem sua luta, mas é ditadura assim mesmo. Não existe no Brasil um Estado com instituições auto- controladas conforme a teoria constitucional, mesmo a mais burguesa de todas. O que existe são instituições dominadas por estruturas mafiosas, uma espécie de confederação de máfias mal encoberta por uma legislação "democrática" que só vale no papel.
Mas, recentemente, algo mais se sobrepôs a essa máfia superdesenvolvida: a orientação estratégico-militar e mesmo o comando direto dos Estados Unidos da América. Claro que algo assim existe e nunca deixou de existir desde a ditadura militar, mas recentemente fatos importantes estabeleceram marcos de uma aproximação muito maior entre os aparatos de repressão daqui e de Washington. Ao nível federal, a experiência militar de guerra urbana das tropas brasileiras no Haiti, que não por acaso foi lembrada como inspiração pelo Beltrame para a operação do dia 27. Ao nível estadual, os encontros de Sérgio Cabral com autoridades norte-americanas (da polícia, da DEA e do próprio alto escalão, como foi a embaixadora Anne Patterson) e colombianas, e sua viagem à Colômbia.
Falando nisso, encontrei compas de Medellín durante os protestos contra o G8 em Rostock, eles me contaram da ação com participação do exército na favela Comuna 13 em 2002, e imediatamente percebi a semelhança quando li e ouvi os relatos da operação no Alemão. Os conceitos de guerra urbana e "guerra ao terror" formulados pela inteligência militar norte-americana estão presentes em cada passo e em cada detalhe da ação da FNS, da Core ou do Bope. O Globo de hoje traz uma ilustrativa entrevista com um policial civil, altamente treinado pela SWAT (EUA) e Cenimar (ditadura), que afirma que se "sairia muito bem" na Faixa de Gaza.
Entender que atuamos pressionando e combatendo, não um Estado de direito, mas uma estrutura mafiosa aliada à maior potência militar do planeta, é indispensável para que passemos a adotar táticas onde têm maior peso a mobilização de base, a denúncia clara e contundente, a desobediência civil e a luta direta. E não precisamos partir inteiramente do zero. Se a máfia estatal aprende com seus aliados dos EUA e Israel, temos felizmente muito o que aprender com as lutas das Madres e Hijos da Argentina, dos refugiados e imigrantes na Europa, das assembléias populares de Oaxaca (México) e El Alto (Bolívia), entre muitas outras.
Maurício Campos 29 de Junho de 2007.
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